"Olhares"

Sento-me às vezes a ver o mundo passar.
Olhar para as preocupações de quem passa, reparar que a preocupação de sobreviver é maior que a de existir, que o seu pensamento não sai de si.
Poucas pessoas existem conscientemente. Dá menos trabalho existir da sobrevivência diária.
Os elementos da paisagem se é que assim se podem chamar existem para quem passa apenas como obstáculos ou elementos figurativos do seu trajecto e raramente são vistos como elementos de pleno direito.
Quem passa não vê, olha apenas.
Olha o caminho para poder passar, olha para se desviar, olha os vultos que passam com ele mas não vê. Não vê o que faz nem porque o faz, ou se alguém passa por ele a fazer.
Uma vez ou outra passa alguém que faz, que sabe e sente, mas opta por seguir despreocupadamente no rebanho para não destoar. Não o censurem, se não o fizesse era tomado por suspeito ou tornava-se em alvo de atenção geral, olhado talvez como um animal exótico.

E vão todos passando...

Vejo um miúdo passar com o seu cão pela mão, levava um olhar mortiço e desiludido de quem não sabe ainda misturar-se no meio da indiferença. Ele não deve ter ainda preocupações reais e as suas necessidades, naquele momento, são apenas as do cão e que este se despache com elas.

Vejo depois um olhar obtuso de números e rituais, poderia ser de um escriturário, empregado bancário ou qualquer outro personagem com idêntico aprumo de ridículo fardamento. A sua provável única preocupação é o medo de ter que lidar com qualquer elemento que não encaixe nos seus rituais.

Rebolando passou uma criatura anafada, com um olhar arregalado, provavelmente sedenta de coscuvilhices alheias, sumarentas se possível. Esta deve viver para seu deleite os problemas dos outros, de tal forma que a única alegria que deve sentir é a do alívio de não serem realmente seus os problemas que chora (se é que chega a chorar). Caso esta fonte quase infindável de preocupações se esgote deve ver novelas e ler romances de sopeira.

Passou depois um olhar pontual, alguém com o aspecto forçadamente desmazelado de artista. Este não via mas ia fixando de passagem o olhar em pontos notáveis como quem procura desesperadamente uns quaisquer lampejos de inspiração. Ia de tal forma fechado no seu mundo que ia atropelando o miúdo que continuava a passear o cão.

Passou depois um olhar seráfico, essa era linda, com um olhar assim certamente que via e sabia até mais do que devia, mas muito pouco deveria merecer a sua atenção. E passou como os outros.

Vejo então passar um velhote, com uma expressão viva e atenta, como se carregado de pensamentos estivesse, e a ver!! Um olhar profundo de quem vê por gosto.
Parou sem pressa ao pé do miúdo ainda necessitado das necessidades do cão, fez de passagem uma festa na cabeça do miúdo enquanto se baixava para olhar o cão. Era um rafeiro enfezado e feio mas olhou-o "como a gente grande", afagou-o e dirigiu algumas palavras ao miúdo, ao que o olhar mortiço se transformou num olhar radiante. O velhote levantou-se e fez de passagem um olhar de aprovação ao miúdo enquanto se virava para seguir caminho. Inchado de orgulho no seu rafeirote, seguiu também caminho o miúdo, levando agora um novo mundo consigo e já esquecido da sua vontade nas necessidades do cão.

O velhote? Esse seguiu numa passada calma, o seu semblante levava a satisfação de quem se lembrou de um gosto passado, vivido na altura certa. Perdi-o de vista ao virar da esquina.

Paguei e levantei-me da esplanada encerrando assim a minha distracção contemplativa. Podemos olhar, brincar ou especular sobre o mundo que passa enquanto anónimo ou não reclamado por alguém. Se a continuasse estaria apenas a querer usurpar ou desrespeitar o mundo que de direito seguiu com o velhote.

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