Espontaneidade

A espontaneidade é um tesouro cada vez mais raro!
Se tentarmos pensar quando foi a última vez que fomos espontâneos, em qualquer tipo de espontaneidade, somos capazes de ter alguma dificuldade em lembrar quando.
Já vos apeteceu, por exemplo, chegar à praia e numa duna desatar a rebolar pela duna abaixo, e não fazê-lo porque há pessoas a ver que nos podem achar doidos... Doidos porquê se provavelmente lhes apetece fazer o mesmo? Ou então estarem tão felizes que simplesmente vos apetece começar dançar? Decerto que a todos já apeteceu isso! Mas são muito poucos os que o fizeram ou tiveram a sorte de ver alguém a fazê-lo.
São muito poucos os que se borrifam para os espartilhos da sociedade.

Outro tipo de espontaneidade quase eliminada é a que permitiria chegar ao pé de uma pessoa de quem se goste e espontaneamente dizer pura e simplesmente – "Gosto mesmo de ti", ou "És uma pessoa fantástica" ou, numa versão mais formal "Admiro-te mesmo".
Quase ninguém tem coragem de o fazer! Não é que não queiram, simplesmente acham que não podem! E como acham que não podem, sentem-se mal ao verem alguém fazê-lo, alguém que ainda tem a coragem de ser espontâneo e, como sentem inveja pela espontaneidade dos outros, criticam e ridicularizam a pessoa invejada.
E assim, algo que todos gostaríamos de conseguir, ser genuinamente espontâneos, fica anulado pela nossa própria insegurança e mesquinhez.

Já vos aconteceu olharem para alguém que mal conhecem e sentirem de imediato uma identificação incrível que vos faz apetecer chegar ao pé dela e dizer-lhe que gostavam de a conhecer melhor, de ser o seu melhor amigo, ou de casar com ela para o resto da vida?

Alto, cuidado, com calma, talvez seja mais sensato não dizer nada! Ou correm o risco de experienciar uma situação de “Crash & Burn”.
Não podemos ultrapassar determinados procedimentos de conduta. Infelizmente a espontaneidade de um sentimento puro só terá possibilidade de sobreviver se forem respeitadas uma série normas pré estabelecidas (que de espontâneo não têm nada).
Por exemplo: Imaginem que um homem vê uma mulher, que nunca vira antes, e por quem sente uma imediata comunhão! Imaginem que o que ele sentia era o mais puro dos sentimentos, aquele que nos leva simplesmente a querer saber mais sobre aquela pessoa. Agora imaginem-no a dirigir-se a ela e a dizer-lhe tudo isto... Como ela fugiria a sete pés...!

Não! Mesmo que sintamos esse tipo de sentimentos puros e espontâneos, se queremos que o relacionamento com essa pessoa possa ter qualquer tipo de futuro ou continuidade, é necessário na maioria dos casos ter que “calar” a pureza e espontaneidade do que sentimos e dar início a uma série de normas estereotipadamente impostas, a uma série de superficiais processos de conduta que levem a uma gradual confiança, por forma a permitir um dia se poder vir a dizer tal coisa, sem sermos vistos como perfeitos loucos.

É a falta de confiança, ou a desconfiança em que vivemos, e da qual nos queixamos, que nos leva a não acreditar em alguém que venha ter connosco com um tipo de conversa de abordagem desse género. Pode ser verdadeiro, sincero e até desinteressado, mas não nos imaginamos a acreditar em alguém que nos aborde dessa forma.

As únicas excepções que me ocorrem seriam: ou uma criança, ou alguém com deficiência mental visível. Se uma delas nos propusesse espontaneamente ser nosso amigo, aí sim nós acreditaríamos!! Porquê? Porque nesses casos conseguimos ainda acreditar na ingenuidade, simplicidade e sinceridade.

Porquê não acreditarmos num adulto, na posse de todas as suas capacidades, se ele já foi uma criança?
Será que a imagem que temos do nosso crescimento e evolução é de tal forma negativa, que tiramos todo e qualquer crédito à sinceridade e boas intenções que outros seres adultos possam ter? Acho que não!! Mas então o porquê desta nossa descrença na sinceridade dos sentimentos dos outros?

Gostava de pertencer a uma outra realidade onde, caso sentíssemos algo de especial por alguém pudéssemos simplesmente chegar ao pé dela e dizer: “És uma pessoa especial e quero conhecer-te”; ou, como no Livro “O Principezinho” de Saint Exupéry, quando a raposa diz ao Principezinho: “Cativa-me" e deixa que eu te cative.

Mas a realidade é bem diferente! Se alguém tiver a coragem de se colocar na pele da raposa de Saint Exupery e chegar ao pé de outra pessoa e disser cativa-me, apenas quatro possibilidades podem ocorrer:
No caso de ser um homem a dizer algo do género a uma mulher, a abordagem seria provavelmente interpretada como um convite ao sexo. Ele seria provavelmente visto como um predador sexual sem escrúpulos a utilizar uma capa de cordeiro.
Se fosse um homem a fazer essa abordagem a outro homem, seria logo apelidado de homossexual,  maricas ou outro epíteto ainda pior.
Se fosse uma mulher a fazê-lo em relação a um homem, ele fugiria a sete pés. Ele pensaria indubitavelmente que só uma desequilibrada, uma "lapa" carente, abordaria alguém dessa forma.
Se uma mulher o fizesse em relação a outra mulher, esta última pensaria “o que é que esta gaja quer!! o que é que ela anda a maquinar”?

E vamos todos andando assim desconfiados nesta sociedade de inseguros.

Enfim, depois disto tudo, se conhecerem alguém que achem especial, tenham cuidado com o que dizem, pensem duas vezes antes de darem largas à vossa espontaneidade e de atropelarem as tais "normas" de conduta e comportamento social.
Se ela for uma das poucas pessoas especiais que entenda a pureza da espontaneidade, sim devem dizê-lo, não deixem de o dizer. Mas se essa pessoa estiver demasiado condicionada pela sociedade, é preferível obedecer às normas de prudência pouco espontâneas, para um dia talvez, poder estar em posição de lhe dizer que ela é especial e ela acreditar sem vos achar doidos.

É pena que assim seja... acho que a maioria não sabe o que perde pela falta de espontaneidade, e pelo facto de não dizermos mais vezes, de forma espontânea, o que sentimos.

A probabilidade de se encontrarem duas pessoas, uma que tenha a coragem de agir espontaneamente, e a outra de acreditar na espontaneidade da primeira, é menor do que sair a lotaria. Mas quando acontece é fantástico!

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